terça-feira, 1 de junho de 2010

BANALIZAÇÃO DO MAL

Hannah Arendt, filósofa alemã do séc. XX, judia, exilada nos Estados Unidos, presenciou o julgamento de Eichmann, um criminoso nazista, em Jerusalém, e ficou impressionada com sua frieza e indiferença diante das acusações que sofria. Parecia surpreso por estar sendo julgado por ter feito o que era simplesmente sua obrigação.

Ele, afinal, não tinha feito nada demais. Somente tinha sido eficiente. Este acontecimento fez com que a filósofa elaborasse uma reflexão sobre a banalização do mal. A Alemanha viveu essa situação: certas leis, atitudes, reações e comportamentos foram se tornando comuns e logo aceitos como normais.

A banalização do mal anestesia as consciências. Convive-se com atentados à dignidade humana sem nenhuma reação, porque a pessoa se acostumou a presenciá-los.

Posteriormente essa pessoa não verá maiores problemas quando precisar tomar alguma atitude reprovável. Na primeira vez, talvez o fará às escondidas, depois, ao se acostumar, mostrará abertamente seu comportamento a uma sociedade que já está acostumada com situações similares.

Vamos abrindo caminho para a indiferença diante do sofrimento alheio, para a insensibilidade frente àquilo que não me atinge diretamente, para o comodismo que paralisa, para pequenos gestos de desonestidade que crescerão e só não se tornarão grandes por falta de oportunidade.

A banalização do mal faz com que ele não pareça “ser tal mal assim”, afinal “todos fazem isso!” Nós nos acostumamos com tragédias tão grandes que aquelas que provocam poucas mortes não atingem o nosso coração. Nós nos acostumamos com a corrupção na política de tal forma que aceitamos as desculpas de um político que diz ter feito aquilo que todos os outros fazem.

Parece-nos normal “roubar” dos cofres públicos, desviar verbas para caixas 2, colocar afilhados em cargos públicos, aumentar as verbas dos gabinetes enquanto se deixa a população sem atendimento médico. Nós nos acostumamos com professores e médicos mal remunerados, com o lixo nas ruas, com a falta de gentileza nas relações, com a grosseria e o despudor.

Parece-nos normal a privatização dos espaços públicos, desde que se tenha cacife para fazê-lo. Afinal, cada um faz o que pode. Quem não faz o mesmo é porque não tem oportunidade. Parece-nos normal burlar a lei para conseguir alguma vantagem, parece-nos normal a mentira, o uso do outro em meu benefício, os pequenos enganos, os pequenos abusos.

Talvez eu não seja uma pessoa ruim, talvez seja uma pessoa de princípios e valores, mas me acostumei tanto em conviver com o mal que não o percebo mais. Tornei-me indiferente a ele.

Como os alemães que se acostumaram em ver as famílias judias desaparecerem e não perguntavam mais o que estava acontecendo. Alguns se acostumaram tanto com o mal que, achando-o normal, colaboraram e até tiraram proveito. Outros não colaboraram, mas também se calaram diante do que estava acontecendo.

A injustiça muitas vezes está muito perto de nós e não a percebemos porque nos acostumamos. Vamos nos adaptando a um meio ambiente degradado, à violência, ao estresse. É mais fácil a adaptação do que o esforço pela mudança.

O que diferencia os seres humanos dos outros animais não é a capacidade de se adaptar ao meio (isso outros fazem até melhor), mas a capacidade de mudar o meio. A adaptação ao mal é um processo desumanizador que chega até o extremo da banalização da própria vida. Conformar-se com o mal é ser um pouco menos humano.


Célia Kapuziniak é filósofa e professora universitária.
Copilado do blog Coisas Judaicas.